Tudo era tão natural: o frio, a
neblina, o acordar cedo, as luvas roxas, almoços de domingo, jogos de dominós,
os granizos que insistiam em cair do céu frequentemente... ahhhh e o bom e
velho chocolate em tubos e o sanduíche que ganhava todos as noites quando seu
pai chegava do trabalho!
Gostava sim, de andar quase 30
minutos para chegar na casa da avó depois de ter pego um ônibus lotado em
frente ao supermercado há quase 1 hora atrás. Era assim, domingo pela manhã,
fazia chuva, sol, o que fosse, era assim. No caminho sempre comia salgadinhos e
um sorvete de máquina de uma padaria. Passava por fábricas, e sempre muito
curiosa sobre o que acontecia lá dentro, perguntava a sua mãe, criando
universos paralelos, animações em sua mente. Ao chegar, casa cheia, primos e
primas, tios e tias, irmãos, juntos! Cada um rindo e falando mais alto que o
outro! Casa rosa, portas e janelas verdes, cheiro de frango, quiabo e jiló!
Coca Diet, quadros pintados, mesa com plástico em cima da toalha, sabonete
cheirosos para lavar a mão, e histórias que o avô contava e conseguia com elas
um silencio incrível de todos para ouvi-lo, enquanto sua avó apesar de cega
terminava de fazer o almoço que preparara sozinha, o melhor almoço do mundo!
Não era a melhor aluna da classe,
mas sentava na frente, tinha uma coleção de livros da Disney e dormia contando
de 0 a 1000. Todos diziam que ia ser cantora, ou bailarina, mas gostava mesmo
era de soltar pipa e brincar de carrinho de rolimã. Quando andava de bicicleta
esquecia-se do mundo, viajava, e isso era um perigo: quase morreu atropelada
pelo caminhão do gás na porta de casa! Odiava bonecas e tudo que era rosa,
gostava mesmo era de bolinhas de gude e caminhões, carrinhos... na verdade
gosta até hoje! Chorava sempre que ouvia sua melhor amiga apanhar porque estava
brincando na rua, os pais sempre foram muito rigorosos por causa de sua
religião (Sempre quis entender porque pessoas sofrem por coisas que deveriam
ser para a sua felicidade). Era feliz com pouco, nunca quis o muito, sonhava
apenas em conhecer o mundo, buscava isso nos atlas que seu irmão estudava!
Agora, o frio é outro, continua odiando rosa e
ainda não acha interessante bonecas, tem alguns carrinhos e ama futebol. Não
tem mais o bom e velho almoço de domingo, geralmente almoça só e descobriu um
amor pela culinária. Vive só mesmo com gentes ao redor. O pouco que tem foi
fruto de seu trabalho. Sonha com o que tinha antes: a casa cheia, a família
unida, a comida boa... Ainda não conseguiu entender porque as pessoas sofrem
por coisas que deveriam lhe trazer felicidade. Não anda mais de bicicleta, é tão
raro poder sentir essa liberdade. As distancias que percorre são curtas e não
muito interessantes. Não é a melhor aluna da classe, nem quer ser, mas vive trancada no
quarto em meio a livros e teorias, pensando em grandes práticas que nem sabem se serão executadas. Dorme cansada abraçada em seu ursinho de
pelúcia que ganhou na páscoa de 98. Já
foi de tudo um pouco, sonha com pessoas, histórias, lugares...
Têm
saudades do passado, opiniões fortes, medo do futuro e seu presente é uma
caixinha de surpresas todos os dias. Sua única certeza é que as coisas que ficaram pelo caminho são os vestígios do tesouro que sua alma carrega, de valor imensurável, assim como o tempo.
Pobre criança perdida no mundo dos adultos! Mal sabe que acaba de nascer. Seu caminho flui como as águas de um rio.